UM ROTINEIRO TIPO DE ESTEREÓTIPO

imagem retirada da internet*
     Trajando bermuda, surrada, jeans, uma velha camisa polo e um chinelo que viria a quebrar as correias horas depois, me dirigia ao Beco da Morte no Mercado Municipal . Em dias de sábado muita gente evita de passar nas cercanias nesse conjunto de boxes destinados ao consumo de cachaça e tira gosto, particularmente prefiro passarinha de boi. Por lá também circulam, além de lavradores e vaqueiros, malandros, ladrões, prostitutas e puxa sacos de políticos em geral.
     Bom, na feira havia uma atividade dos alunos de letras que incentivava a leitura doando um exemplar à escolha, dentre variados títulos. Bastava responder umas perguntinhas de um questionário e escolher.A moça, simpaticamente procurou meu nome, se eu morava na cidade, grau de escolaridade: 
     - Meio envergonhado (não gosto de ficar citando escolaridade fora dum ambiente profissional), apontei-lhe 3 dedos da mão esquerda, ela olhou meus trajes e interpretou firmemente:
     - Terceira série!
     Jacobina é mesmo atrasada, discriminadora, antiga, esclareci meio sem vontade:
     - Superior.
     Ela continuou o questionário meio sem acreditar e disse que poderia escolher um livro; procurei passando por alguns livros de auto ajuda, história oficial, romances e vi um exemplar de Camões, Os Lusíadas, escolhi-o. Falei pra ela sobre as navegações, a conjuntura da época, do Classicismo, fui pro Trovadorismo, voltei pro colonialismo, voltei pra tomada de Constantinopla e recitei-lhe:
               Amor é fogo que arde sem se ver,
               é ferida que dói, e não se sente;
               é um contentamento descontente,
               é dor que desatina sem doer.
     Na última pergunta de porque tinha escolhido o título, disse-lhe que era pra presentear alguém, Camões não era o tipo de título que eu teria em minha biblioteca, achava antiquado sem graça, uma poesia enclausurada em regras, versos burocráticos.
     Me fundamento nos versos finais da Quaderna a mim transmitido por Belchior que resgatou A PALO SECO, onde poeta João Cabral de Melo Neto, afirma: "... não o de aceitar o seco por resignadamente, mas de empregar o seco porque é mais contundente.." Acredito na palavra cortante, não como defesa, mas como ataque.


A PALO SECO 

João Cabral de Melo Neto

1.1.
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.


1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.


1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.


1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.


2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.


2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.


2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.


2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.


3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.


3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.


3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.


3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.


4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.


4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.


4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.


4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.


*
https://www.google.com/search?q=palavra+s+cortantes&safe=off&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjYy9HJ-YvdAhWBgZAKHUrVCCcQ_AUICigB&biw=1366&bih=631#imgrc=yze5Ux5S3uyz2M:

Nenhum comentário:

ADEUS JACOBINA

O Vei Jacobina, pseudônimo de Valdemar Ramos Oliveira que faleceu essa semana no sertão da Bahia dend'os 93 anos que ia interar em julho...